Olá!

Essa semana estou dando continuação ao tema descrevendo o uso da cerâmica nas cerimônias indígenas. Como base, estou usando o excelente livro “Suma Etnológica Brasileira – Vol. 2”. Recomendo muito a leitura, pois é uma ótima referência para o assunto.

Introdução

Embora o tema desse post sejam as cerâmicas destinadas ao mundo cerimonial, mesmo nas cerâmicas utilitárias dos povos indígenas estão presentes desenhos zoomorfos, padrões geométricos, etc. que possuem mais do que um significado meramente formal. Em relação ao uso, como escreve Gordon R. Willey, existe uma superposição das cerâmicas utilitárias e cerimoniais. Peças desgastadas pelo uso diário estão presentes no interior de urnas funerárias com o papel de servir oferendas aos mortos.

Apesar, de uma maneira geral, o acabamento das cerâmicas rituais são mais elaborados, existem peças muito bem elaboradas usadas no mundo cotidiano.

Procurei destacar algumas peças de interesse de alguns povos indígenas.

O povo Tukâno e o recipiente de yajé 

Entre o povo Tukâno, do norte amazônico, existe uma cerimônia onde se bebe um cipó alucinógeno chamado yajé. A cerâmica que guarda e serve os índios o extrato desse cipó difere de todas as outras produzidas por este povo e são raros os relatos sobre ela. Segundo o pesquisador Gerardo Reichel-Dolmatoff, no livro “Os Alucinógenos e o Mundo Simbólico”:

Esta vasilha é um objeto ritual de importância e consiste de um recipiente de cerâmica de uns 25 cm de altura, de corpo globular, provido de uma base cilíndrica alta e de duas pequenas asas na borda do orifício. Essas alças são perfuradas e, passando por elas uma corda, a vasilha pode ser transportada ou pendurada. A panela de yajé (gahpí soró) deve ser manufaturada por uma mulher anciã que, para alisar e polir as superfícies, interna e externa, deve utilizar uma pedra especial muito dura, lisa e de uma cor amarela. Essa pedra é interpretada pelos Tukâno como um ‘falo que vai modelando’ a vasilha, que é um receptáculo uterino. (…) Exteriormente a vasilha leva, sobre um fundo escuro natural, uma série de pinturas policrômicas em branco, amarelo e vermelho; as duas primeiras cores representam o princípio da fertilização e, a última, a fecundidade. Sobre a base cilíndrica, pinta-se às vezes um vagina e o clítoris, representando assim a ‘porta’. Quando a vasilha de yajé não está em uso, é guardada suspensa por uma vara fora da casa, sob o teto saliente; porém, quando se prepara o yajé, a vasilha é limpa do pó e, eventualmente a pintura é retocada. Antes de ser usada, a vasilha deve ser purificada com o fumo de tabaco; da mesma forma, é purificada a vareta com a qual se mexerá a bebida antes de consumi-la. Quando está cheia de líquido, o homem transporta-a para o interior da casa e coloca-a em num lugar escuro

Vaso cerimonial para o consumo do Yagé dos marúbos que são um grupo indígena da família pano que habita o Sudoeste do estado brasileiro do Amazonas, mais precisamente a Área Indígena Vale do Javari.https://www.artesanatodajaci.com.br/

Vaso cerimonial para o consumo do Yagé dos marúbos que são um grupo indígena da família pano que habita o Sudoeste do estado brasileiro do Amazonas, mais precisamente a Área Indígena Vale do Javari. Fonte: https://www.artesanatodajaci.com.br/

Segundo os Tukano, o objetivo é regressar ao útero (…) onde a pessoa ‘vê’ agora as divindades tribais, a criação do Universo e da Humanidade, o primeiro casal; a criação dos animais (…) Durante o ritual, a pessoa entra pela ‘porta’ da vagina, pintada na base da vasilha e, no interior do recipiente, une-se com o mundo mítico da Criação.(…) Esse retorno ao útero é também uma aceleração do tempo e equivale à morte. Segundo as palavras dos índios, a pessoa ‘morre’ mas logo revive em um estado de sabedoria, porque ao despertar do transe, o indivíduo vê confirmada a verdade de seu sistema religioso, pois viu com seus próprios olhos as personificações e cenas míticas

Ainda, as alucinações os Tukano servem de inspiração para os seus desenhos geométricos, elementos zoomorfos e antropomorfos que irão decorar vários tipos de meios, inclusive suas cerâmicas.

O povo Waurá e o nukaatsen

Os povos Waurá, do alto Xingú, são grandes ceramistas ao ponto das mulheres desse grupo terem sido alvos frequentes de raptos pelas tribos inimigas vizinhas.

Dentre sua coleção de panelas, vasos e potes, a peça cerimonial chamada nukaatsen serve para ferver a água usada no rito de perfuração de orelhas dos meninos.

nukaatsen dos índios Waurá. Fonte: http://www.iande.art.br/

nukaatsen dos índios Waurá. Fonte: http://www.iande.art.br/

A decoração externa recebe uma pintura em vermelho feita com os dedos ou chumaço de algodão. Esse pigmento está descrito na parte 1 deste post e é feito com a adição de urucum em uma bola de barro, que é cozida ao fogo. Uma vez queimada a bola é raspada e seu pó misturado com água e pintado antes da queima. Após a queima, a mesma área recebe uma nova demão de urucu com óleo de pequi, para realçar a cor.

Para os desenhos de raios, traços e losangos é empregada uma tinta escura, resultado da maceração de um arbusto possivelmente do gênero Eugenia. Esse pigmento também recobre o interior da peça, que também recebe uma queima com palhas e cascas de árvores, que emitem muita fumaça. Esse processo é repetido várias vezes e a fuligem depositada no interior da peça nessa etapa forma um revestimento muito resistente.

O povo Karajá e suas bonecas litxocô

Os Karajás também são exímios ceramistas e entre a sua produção estão as bonecas, chamadas por eles por litxokô. Apesar de não servirem em rituais religiosos, essas bonecas tem um papel de narrar aos jovens os mitos e estrutura social dos povos Karajás, ultrapassando a função meramente lúdica para as crianças.

Em janeiro de 2017, foi aprovado pelo IPHAN o registro das bonecas Karajá como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, nas categorias ofício e modos de fazer e formas de expressão.

Segundo a página do museu antropológico de Goiás:

Através das bonecas de cerâmica, as mulheres Karajá representam o mundo material e simbólico do povo Iny*, por meio da arte de modelagem da argila e da decoração das peças.

* – Iny quer dizer “nós” na língua Karajá

Boneca Karajá. Foto: Acervo Iphan/ Telma Camargo

Existem dois padrões estilísticos das bonecas. O primeiro, anterior à 1940, apresentam figuras separadas, de pequeno tamanho e em postura ereta e extremamente rígidas. O umbigo recebe um orifício assim com como a boca mas por vezes esse último recebe apenas uma incisão. Além das pinturas corporais, os cabelos, tingidos de negro, sugerem o sexo dos bonecos. Apesar de todas as outras cerâmicas Karajá receberem queima, as bonecas dessa época são de barro cru. Esse fato, assinala a autora Tânia Andrade Lima, certamente é intencional mas suas razões são desconhecidas.

Após essa fase e talvez presença mais marcante da cultura ocidental européia, os índios Karajá passaram a moldar os seus bonecos às vezes sentados, em conjunto e em reproduções de cenas do cotidiano. As figuras apresentaram membros mais diferenciados e passaram a receber a queima.

É isso pessoal, espero que tenham gostado e espero vocês no próximo post!

Fonte:

  • R. Willey, Gordon e Andrade Lima, Tânia in Suma Etnológica Brasileira 2 – Tecnologia Indígena. Coord. Berta G. Ribeiro. Ed. Vozes.
  • Universidade de Goiás, Bonecas Karajá : Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
    https://www.cienciassociais.ufg.br/n/19655-bonecas-karaja-patrimonio-cultural-imaterial-do-brasil
  • Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil – Instituto Socioambiental, Iny Karajá. https://pib.socioambiental.org/pt/povo/iny-karaja/print
  • UFG – Museu Antropológico, Bonecas Karajá. https://www.museu.ufg.br/p/1322-bonecas-karaja
As Cerâmicas Indígenas Brasileiras – Parte II