Olá pessoal!
Eu estou postando hoje o conteúdo modificado do segundo capítulo de minha monografia “arteterapia de abordagem junguiana – a técnica do cuidado na cerâmica”.
Nela, eu escrevo sobre a cerâmica e sua relação com a técnica, simbolismo e funcionalidade.
Espero que gostem!
Definição
Vamos agora apresentar duas definições para a palavra cerâmica.
Rhodes define cerâmica como “a arte de fazer objetos permanentes de utilidade e/ou beleza por tratamento térmico a partir de matérias-primas terrosas”.
Após o processo de queima, o barro tem a sua estrutura química irreversivelmente alterada não podendo, assim, ser reciclado. Além disso, o que antes era um material quebradiço e frágil torna-se muito resistente e durável. Sobre esse material criado pelo homem, nós criamos nossas peças que seguem padrões de beleza específicos de uma civilização e que, muitas vezes, são feitas para cumprir certo objetivo utilitário.
Já segundo o dicionário etimológico, a palavra nos leva ao seguinte significado: “entre os antigos gregos, vaso de barro cozido à mesa”.
Esta definição reforça a interpretação de Rhodes de argila transformada pelo fogo, adicionando a ela a o seu cenário natural: o ambiente doméstico. Não há como pensar em cerâmica sem levar em conta sua funções utilitárias, estéticas e simbólicas e essa relação será o que discutiremos adiante.
Base existencial da Cerâmica
Para Rawson, a avaliação contemporânea das obras de cerâmica recaem no critério estético puro ou funcional. Porém, ambas abordagens são inadequadas já que somente pelo viés do funcionalismo não conseguimos explicar as inumeráveis formas e variações das peças que cumprem a mesma função. O esteticismo, por outro lado, por se concentrar na pura beleza da obra em cerâmica se esquece que ela sempre esteve intimamente conectada à sua natureza utilitária.
O autor nota que a cerâmica, desde os primórdios, foi usada pelo homem para a melhoria das suas condições de vida. Segundo ele, apesar dos diversos usos que a humanidade tem dado a ela, desde as urnas funerárias até estátuas de deuses, a função de conter bebidas ou comidas tem sido a mais importante e “a relação constante com a comida provavelmente desempenhou o papel mais vital em conferir à cerâmica de sua característica simbólica especial”.
Pela função que se tem dado à cerâmica através da história podemos comprovar que esse material têm consistentemente servido à humanidade de maneira utilitária e, apesar dos seus diversos usos, o de servir como recipiente para bebidas e comidas tem sido sua raison de vivre. Porém, ao conjuntamente a desta essência da cerâmica notamos que a ela foram dados valores subjetivos.
Podemos explicar a presença destes conteúdos simbólicos na cerâmica pelo fato de que ela é o resultado da transformação de um elemento natural (barro) em algo essencialmente criado. Por ser um produto da criatividade, ela produziu no ser humano um senso de auto-realização que, desde a sua origem na era neolítica, criou um senso de separação das coisas criadas pelo homem do restante do mundo natural. Assim, os objetos cerâmicos possuem valor simbólico porque são um meio de expressão dos conteúdos internos de seus criadores.
Para seus criadores e usuários elas (as cerâmicas) sempre foram uma espécie de revelação em uma via de mão dupla, primeiro do homem para si mesmo como agente criativo e de trabalho independente e segundo, do mundo para o homem como um meio, imbuído da ‘realidade’, que ele é capaz de transformar. Um pote, portanto, ‘contém’ tanto a realidade dos materiais e do processo, quanto as realidades internas do senso de identidade do homem em relação ao seu próprio mundo de significados.
Essa característica da cerâmica de possuir, ao mesmo tempo, valor utilitário e simbólico fez com que ela fosse utilizada tanto na esfera mundana como religiosa, como é ressaltado por Neumann:
Se encontramos os vasos sagrados não só na Elêusis grega e nas vestais romanas, mas também na América do Sul, especificamente no Peru, e em Daomé, na África, estando estes sob a específica custódia das sacerdotisas, essa instituição assenta-se, então, no fundamental significado simbólico e sociológico do pote.
Por milênios, ela acompanha os nossos hábitos e está presente nas nossas casas, templos, nos locais de trabalho… Elas são as testemunhas anônimas do nosso dia-a-dia. Dessa origem simples mas permeada de valores simbólicos fizeram com que ela tivesse presença em quase todas as atividades humanas e a partir dessa relação com a humanidade que uma estética própria a ela foi criada. Por isso, elas têm a capacidade, talvez melhor que as outras formas de expressão criativa, de preencher o vazio que sentimos entre a arte e a nossa vida cotidiana.
A Técnica na Cerâmica
A diferenciação que o homem realizou entre ele e a natureza propiciando a criação da cerâmica, por exemplo, surgiu pelo uso da técnica. A técnica, segundo Ortega y Gasset, surge como um instrumento do homem para não só suprir as suas necessidades básicas, comuns aos animais, mas também para atender ao seu bem-estar, sendo “a reação enérgica contra a natureza ou circunstância, reação essa que cria entre a natureza e o homem uma nova natureza”. Neste movimento para criar a sua própria natureza, o homem busca o domínio dos elementos como a terra e o fogo, possibilitando o surgimento da cerâmica. A cerâmica, por sua vez, cumpre seu papel na forma de utensílios, permitindo que o homem possa viver em sua própria realidade, economizando esforços e tempo, assegurando o seu bem-estar.
Segundo Ortega y Gasset, não existe homem sem técnica mas a forma com que ele se relaciona com ela mudou com o tempo. Quando o homem descobriu a cerâmica, usando a chamada técnica do acaso, ele ignorava a própria técnica como tal. O homem estava imerso quase totalmente na natureza e quando descobria uma forma nova de interação com as coisas, experimentava a “impressão do oba!”, não reconhecendo a sua invenção. Além disso, não existia a especialização do ato e todos da comunidade compartilhavam as mesmas funções. Assim, a cerâmica surgiu como resultado da técnica mas operada pelo acaso e evoluiu com o tempo para ser usada de forma mais consciente na tentativa de tentar melhor controlar os elementos em seu ato produtivo.
Rhodes ressalta que a argila, embora abundante, é um elemento “temperamental”. É maleável quando molhada, mas ao secar torna-se frágil, quebradiça e quando queimada, encolhe, gerando com isso todos os tipos de problemas para o ceramista. A queima é descrita pelo ceramista inglês Bernard Leach como uma batalha pois as chamas do fogo tem os seus caprichos e o ceramista precisa o tempo todo manejá-la adequadamente para que se tenha o mínimo possível de perdas. De Waal descreve o momento em que foi a um antigo local de produção de cerâmica, perto da cidade chinesa de Jingdezhen que, desde a antiguidade, é uma importante produtora mundial de porcelana:
E debaixo dos pneus de nosso carro, em meio às ervas daninhas, há caixas refratárias quebradas, marrons e pretas, vasilhas de barro ásperas com bordas altas e doze, quinze centímetros de diâmetro, E cacos, pálidas meias-luas de porcelana na terra vermelha. Pego o primeiro: é a base de uma taça de vinho do século XII, uma haste fina e pontiaguda segurando um bojo trincado, o diâmetro tamanho de um polegar. É inacreditavelmente fina. E nem um pouco branca – é de um leve azul céladon aguado, com uma teia de rachaduras marrons no ponto onde centenas de anos de solo mancharam.
Este é o meu momento graal, e a seguro com reverência. Todos riem de mim e da minha epifania ridícula, pois adiante há uma encosta só de cacos, uma paisagem de quebraduras, um dicionário que contém todas as formas possíveis de como potes podem dar errado. Não se trata de um monte de despojos discreto, apesar de descuidado. Pelo contrário: é uma paisagem inteira feita de porcelana.
E assim, por séculos, os ceramistas tentaram mitigar os problemas decorrentes do processo de criação de suas peças, acumulando conhecimentos sobretudo através de tentativa e erro, formando o seu repertório técnico que foi transmitido até os dias de hoje.
Boa parte do processo produtivo que usamos hoje na cerâmica em nossos ateliês vem de uma época na qual era empregada o que Ortega y Gasset classificou de a “técnica do artesão”. Nela, os homens, embora se percebessem distintos da natureza, tinham uma interação profunda e sustentável com ela, se inspirando e retirando somente o que lhe era necessário. Nessa fase, o instrumento é o complemento do homem e não existia a máquina como dispositivo de criação, isto é, o homem era o protagonista no ato de produção. Além disso, ele era o responsável tanto pela concepção (mechané) quanto pela execução da criação, não havendo nessa fase uma divisão entre os dois.
A partir desta época podemos perceber a especialização das atividades e suas técnicas. Havia, portanto, a figura do ferreiro, sapateiro, ceramista, etc. Apesar do uso da técnica, não havia a consciência da técnica como uma entidade em si. O que existia nesta época, entretanto, era a ideia de que certos homens possuíam habilidades naturais para desempenharem certas funções específicas. Apesar da percepção da época de que o ato do artesão não pertencer ao mundo natural, sua técnica lhe era fixa sendo parte de sua natureza. Dessa forma, surgiu o termo grego techné que vinha deste “sistema fixo das artes, que é como são chamadas as técnicas entre os povos dessa época”.
A transmissão do conhecimento dentro de um determinado ofício ocorria via mestre-aprendiz. Neste modelo, o saber era repassado para o discípulo conforme ele cumpria as tarefas na oficina de trabalho. Inicialmente, o discípulo começava pelas tarefas mais pesadas como a limpeza, coleta de argila e da lenha etc. Só depois que ele dominava estas atividades, ele aprendia a fazer a moldagem e a esmaltação, que eram as etapas mais “nobres” do trabalho com a cerâmica. Assim, só depois de muito tempo de trabalho sob a rígida supervisão do mestre que o aprendiz poderia desenvolver sua própria linguagem, tornando ele próprio um mestre-ceramista.
Um exemplo da convivência entre mestre e aprendiz está retratado no romance de Park, “Por um simples pedaço de cerâmica”. A história se passa em um vilarejo de ceramistas na Coreia do século XII e conta a história de um garoto órfão (Orelha-de-pau) que, fascinado pela obra de um ceramista local, se propõe a trabalhar para ele. Orelha-de-pau realiza os trabalhos que o mestre o mandava fazer. Eram tarefas pesadas que não satisfaziam o menino, pois seu desejo era de aprender as técnicas de moldagem no torno. O desafio do menino era conquistar a confiança do seu mestre através da obediência das rígidas regras do aprendizado para alcançar seu lugar como um ceramista. É pelo caminho da humildade e persistência que o menino vai conseguindo deixar de ser um participante passivo no processo e se emancipando como criador.
A Questão Moderna da Técnica
Hoje em dia, a ciência consegue explicar minuciosamente os processos químicos e físicos envolvidos na produção da cerâmica. Isso tem levado ao refinamento técnico sobretudo na indústria no intuito de diminuir as perdas e otimizar ao máximo sua produção. Entretanto, o ceramista artesanal vê com certa desconfiança o envolvimento do tecnicismo com o seu trabalho. Isso porque, como vimos, a base existencial da cerâmica é a conexão subjetiva entre ela e o modo de vida de quem as produz ou usa e a ciência, voltada mais para o campo objetivo-materialista, deturpa essa relação. Rawson escreve que “Embora a cerâmica deva ser baseada em algum tipo de tecnologia, se for uma boa cerâmica, sempre escapa à tirania de sua tecnologia”.
Atualmente, vivemos uma fase que emprega o que Ortega y Gasset chama de a “técnica do técnico”. Nesse período, o homem “vive com fé na técnica e só nela”. Ela toma tal importância para nós que não conseguimos mais limitá-la. Seu poder de fazer tudo desencadeia um esvaziamento da nossa vida, pois por poder tudo imaginarmos, esquecemos das nossas próprias prioridades existenciais. Além disso, por conta dessa relação de dependência com a técnica, há um distanciamento tal com natureza que não podemos mais viver nela, não havendo mais consciência de sua existência.
Além disso, com a invenção da máquina o homem torna-se um coadjuvante na manufatura e quando ele participa ativamente no processo, existe uma separação entre a atividade do técnico (o engenheiro) e a do trabalhador. Além disso, o técnico dedica-se a inventar e “diferente homem primitivo, antes de inventar, ele sabe que pode inventar, isto equivale a que, antes de ter uma técnica, ele tem a técnica”. A partir de então, há a percepção de que “as técnicas são apenas concretizações a posteriori da função geral do homem”. O método intelectual que resulta deste raciocínio, o tecnicismo, é essencial para a criação da técnica como uma atividade autônoma mas pode deixar o inventor à deriva na própria falta de limites de sua imaginação.
Conclusão
Resumindo, existe na base existencial da cerâmica uma união entre seu aspecto funcional, simbólico e estético. Embora a argila seja um material natural, a cerâmica, por ser inventada pelo homem, permitiu que ele pudesse ver a sua obra a partir de um ponto de vista distinto do mundo natural. Além disso, esse processo de diferenciação permitiu que ele se visse no seu trabalho como um reflexo das realidades de seu mundo interno. Os objetos cerâmicos surgiram primordialmente para o seu uso no dia a dia. Possuem, assim, desde as suas origens, uma função específica mas também são o fruto da expressão de valores subjetivos e simbólicos de seus criadores. Por isso, além de sua função utilitária, podemos caracterizá-los como objetos carregados de conteúdos simbólicos. A partir dessa relação, uma estética própria foi desenvolvida que refletisse essa interação.
Sobre a questão da técnica e a liberdade criativa, hoje em dia é comum designarmos “ateliê de cerâmica artesanal” como o local de trabalho do ceramista. Esta designação une duas formas de criação distintas: o ateliê nos remete ao espaço onde o artista é privilegiado com a total liberdade no processo de expressão criativa; a outra forma vem do artesanato que, como vimos, possui regras rígidas de repasse dos conhecimentos técnicos e, de certa maneira, limita a criatividade dos seus criadores. Isso mostra uma dualidade e levanta a questão entre a base técnica da cerâmica e a liberdade criativa dentro deste meio. Além disso, a posição hegemônica da técnica na atualidade coloca o ceramista em uma posição de desconfiança em relação e ela.
Assim, a cerâmica é um campo repleto de dualidades: liberdade e tradição, técnica e criatividade, simbolismo e funcionalidade. Como poderemos conciliar e tomar proveito dessas tensões essa é um campo fértil de investigação para o ceramista contemporâneo.
Fontes:
- Ortega y Gasset: Meditação sobre a Técnica
- Edmund de Waal: O Caminho da Porcelena
- Erich Neumann: A grande mãe: um estudo histórico sobre os arquétipos, os simbolismos e as manifestações femininas do inconsciente
- Philip Rawson: Ceramics
- Linda Sue Park: Por um simples pedaço de cerâmica
- Daniel Rhodes: Clay and glazes for the potter
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